terça-feira, 13 de novembro de 2012

Via-se logo a doçura própria dos monstros na precisão de cada um dos seus gestos. Dez anos depois e ainda me recordo como abriu o casaco e retirou um pequeno livro de dentro, como quem empunha uma arma diante de si e de mim e preenche o espaço entre nós, a distância imprecisa entre as duas poltronas do trem, frente a frente, entre seu rosto e o meu.

A distância alcançava e atingia também o mundo lá fora, por onde corriam meus olhos antes da sua chegada. O mundo era imenso e ainda assim, cabia confortavelmente naquela janela que parecia emoldurar o que havia de melhor a ser visto ou assim eu o imaginava por não ser capaz de pensar no que haveria além daquela paisagem, dos pinheiros, das casas repousando tranquilas sobre a neve, sob a neve que amacia o mais rude dos passos, silencia o mais estridente dos ruídos. Um tiro. As asas de um pássaro negro.

A neve que caía era pouca e desmanchava sobre o trem, escorria gota à gota pelo vidro, uma a uma a fundir-se, perdendo-se, refazendo o caminho até o solo no ciclo perfeito e natural da água sempre previsível e sempre a surpreender-me. 

Apenas uma hora nos separava do destino final quando ele chegou com seu livro, o casaco pesado, o gesto preciso e leve a revelar-se exageradamente harmônico por conta daquele rosto simétrico e bondoso. Havia bondade também quando ele sorriu e pareceu dizer-me que, devido às atuais circunstâncias, teria de me matar imediatamente. Devolvi-lhe o sorriso e tirei do bolso do casaco um maço de cigarros. Acendi um. Ofereci-lhe outro. Agradeceu-me. Passei-lhe o isqueiro.

Eu não fumo. Nem ele.

Dizem - e já não sei quem diz  - que em face da própria morte vê-se a vida passar inteira num segundo diante dos olhos. Minha vida não passou apressada naquele momento; escoava lenta, vagarosa e desapressada como as gotas que rolavam pelo vidro, em perfeito contraponto à paisagem que contemplávamos agora mudos e que se estendia pela planície que emoldurava cada margem do rio sob a ponte. Não sei se por conta do rio, da lentidão dos minutos, do cigarro ou da maneira como ele disse "circunstâncias" ou se porque falava da morte, mas pensei nela, em como poderia dizer sem a menor ou mais vaga esperança que a vida não passaria por nós - ou que nós não passaríamos pela vida? - em vão. Viver é uma coisa muito perigosa, ela disse tranquila e sem emoção pois talvez não compreendesse o que significava "perigo", e eu a repetia agora, também tranquilo e pouco convicto, também sabendo que naqueles momentos reluzentes em que se sabe com toda certeza que se está vivo aproxima-se perigosamente da morte, sem medo da morte, sem medo da vida. Sem medo. Tudo é aqui. E é agora. Agora basta. Bastava. Ela disse.

E por pensar nela diante da minha morte anunciada, pareceu-me ainda mais bela e mais absurda ela, e não a morte. Senti que finalmente a compreendia, que a conhecia, que a veria surgir a qualquer momento com seus passos dançantes, com a voz que nunca mais ouvi mas que reconheceria logo, que me cativaria e me teria cativo, preso e prisioneiro voluntário do absurdo das suas palavras, palavras grandes, palavras duras, palavras que se desmanchavam e caíam dentro de mim e a minha volta, frias feito neve, rodopiantes como seus passos, como a colher entre seus dedos a revolver o café, o açucareiro, meus pensamentos.

Estive tão imerso em meus devaneios que esqueci-me completamente do meu interlocutor, que parecia igualmente esquecido de mim. O cigarro que lhe ofereci queimava sem ser tragado entre seu polegar e o indicador. Lembrava-se. Sonhava. Esquecia-se. Não fumava. Café?, quis saber ela. Me ama?, quis saber eu. Sorri porque ela sorriu e lembrá-la me fez sorrir novamente. Dessa vez um sorriso feio e fora de contexto. Ele me olhava com a sobrancelha esquerda erguida, um pouco de lado e como quem pergunta "o que há?". Não havia nada, eu disse a ela e já fazia tempo, não havia nada com que se preocupar. Era muito cedo para isso. Ou muito tarde. E porque nunca era a hora certa, e porque estávamos sempre atrasados ou a vida se precipitava a nossa frente rápido demais, ficávamos os dois a contemplar a vida como se estivéssemos sempre à janela de um trem.

O trem. Talvez por isso pensasse nela.

- Lembra-se da viagem que não fizemos?
- Como poderia me esquecer?

Deitados no gramado úmido numa tarde de inverno contemplávamos o céu sem nuvens e lembrávamos do que jamais poderíamos ter esquecido. Falava-me da roupa que teria usado em Paris e de como eu estaria igualmente elegante em Londres, onde teríamos assistido ao concerto e bebido vinho, onde tomaríamos o trem de volta para Paris e jantaríamos num pequeno bistrô que serviria sopa e a omelette du fromage  que estaria divina. Lembrávamos dos amigos pintores, dos poetas, dos alcoólatras e das danças que não dançamos porque nunca aprendemos a dançar. Eu lhe diria então que era tarde e voltaríamos ao nosso appartement, e pronunciávamos essa palavra com um orgulho pretencioso que não era arrogante, non!, era élégant. E élégant seria o tal appartement no arrondissement de Paris e daquele número ordinal em diante falávamos somente em francês. Ou era assim que agora eu me lembrava? Por ela eu teria inventado um outro idioma qualquer que só eu soubesse e que só ela entendesse. Criaria novos verbos para as emoções que não podíamos nomear antes, haveriam substantivos e sujeitos mais substanciais e vivos que a própria Vida, e tudo o que eu dissesse seria como uma pintura hiper-realista, uma experiência de quase morte. Como num encantamento meus novos adjetivos fariam a hora passar devagar, em slow motion, tingiriam de preto e branco a paisagem, num film noir, o café, o trem, o céu, a neve, a fumaça do cigarro, meus dedos frios, os olhos dela, meu ciúme.

Se me pedisse, se tivesse pedido eu teria inventado tudo, teria escrito livros e pintado quadros com esse idioma oculto e, ocultista, teria ficado, teria partido, teria mudado e permanecido o mesmo. Mas ela não disse nada, e por conhecê-la tão bem me transformava nela e enxergava além do seu silêncio. Eu sabia.  Eu adivinharia tudo. Lembrava-se? Sonhava?

Não.

Calava-se. E esquecia-me.

Esquecia-me assim como eu a esquecia nas páginas dos livros que folheávamos - e penso nisso pouco antes do homem à minha frente abrir um deles. Folheava, distraído e displicente, a provocar-me. Como o Estudante de Wilde clamávamos, eu e ela, a estupidez do amor e metíamos nossas cabeças ainda mais fundo nos livros sem nos dar conta de que, bem debaixo dos nossos narizes, o amor irrompia decidido e, terrivelmente obstinado avassalou nossos frios corações. Amar era estúpido e não amar, mais estúpido ainda. Vale mencionar que nossa estupidez era imensurável naqueles tempos e maior ainda naquele dia em que nos despedimos sabendo sem saber que jamais nos veríamos novamente. Virei-me rapidamente depois daquele longo abraço e tomei o trem.  Procurei por seu olhar uma última vez e repousei os olhos uma última vez sobre seus cabelos. Caminhava firme. Partia. Não se voltou e eis tudo. A porta do trem se fechou com a determinação violenta do que assola corações.

O homem a minha frente parecia velho, parecia cansado, parecia-se comigo e era eu. Como eu. Procurava por ela como quem procura no escuro a maçaneta de um porta quando já não há mais porta nem maçaneta, somente a recordação vaga de onde cada coisa se encontrava: entre as mãos que tateiam e a noite, o espaço denso e descolorido que tudo abarcava.