quarta-feira, 4 de setembro de 2013

Urucum

No peito
Tu-tu
Tá-tá
Sol bonito 
Tu-tu-cum
Vivo sangue 
Você vivo
Vivo em você
Urucum

sexta-feira, 1 de março de 2013

O livro é seu. Eu leio e não entendo, não te encontro, mas procuro a cada página a voz que nada diz e te escuto naquelas partes grifadas. Nelas, estou à espera de uma revelação.  Nelas, te ouço sussurrar dentro de mim e ecoar na minha voz. Quero nos meus olhos os olhos teus. Quero estar mais perto mas nunca estive tão longe quanto agora, enquanto leio seu livro favorito e nada compreendo da sua escolha. E compreendo menos ainda que tenha me escolhido por confidente: "toma, é o livro que mais gosto" você disse ou foi quase isso, talvez tivesse dito que o livro não morde e, que pena, não me mordeu mesmo, não me puxou pelos cabelos, não rompeu as correntes que atam minhas mãos e que em meus pés pesam feito peso do mundo. E você é leve, uma pluma que não acompanho, que o mais leve sopro da minha fatiga imensa pode afastar - e afasta. Afastou.

Quero sentir o que jamais senti por não ser dotado da sua iluminância boreal, do seu brilho que se materializa em qualquer um dos seus gestos e em tudo que recebe a graça do seu toque, das suas palavras sempre tão afiadas e certas feito faca, feito lança, você é guerreira e eu, desajeitado escravo sujo e gasto, estou no mesmo lugar a tentar decifrar os signos impressos. Caminho e caio entre cada uma das palavras que você conhece bem. Percorro por este caminho que te fez você e que me deixa cego, surdo, manco, parestésico.

Mas eu minto. Estou mentindo se digo que não sinto nada: sinto (e com uma nitidez quase concreta e irracionalmente estúpida) a falta que você me faz.

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

Atento ao que digo, fixado em meus atos, amou cada um dos meus defeitos.

terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

Daquele tempo não restou nada. Nenhuma foto ou ferida visível. Os copos quebrados continuam irremediavelmente quebrados e perdidos noutro lugar qualquer. Os sapatos que usamos para correr, dançar e fugir escaparam por conta enquanto ainda era tempo e nos deixaram descalços e com os pés feridos. Os dias se repetiram, viraram noite e noite a dentro ou dia a fora o tempo passou e as rosas morreram. Lojas abriram e fecharam naquela rua, outras mulheres entraram e deixaram aquele apartamento, aquela vida. A vida dele. A vida que não conheci, vida dele sem mim, o grande palácio oco onde minha voz ressoava clara e forte mas que agora não passaria de um eco difícil de escutar, difícil de entender, fantasmagoricamente alucinado e irritante. Ecoante chega agora até mim aquelas palavras que não ouvi mas que ouvia claramente como se ele me sussurrasse uma a uma no ouvido enquanto eu lia e relia aquela carta. Carta perdida. Carta no meio de tudo, no meio da bagunça do meu mundo e agora fixa no emaranhado do meu cabelo, encardida das minhas mãos que a tomaram entre os dedos com cuidado, cuidado de quem sabe que eis tudo, eis o que resta, foi aqui, este pequeno pedaço de papel a me falar daquele que nunca pude compreender. Ou aceitar. Leio novamente. As passagens são exatas, cada frase construída com precisão, na medida exata do exagero e de uma forma desordenadamente bela. É desconcertante pensar que se dirigissem a mim. Leio como se a tivesse roubado. Cometo plágio: leio como se eu a tivesse escrito, penso no talento que nunca tive para imitá-lo, seguir seus rastros, suas migalhas floresta a dentro. Penso em tudo o que faria se tivesse o seu talento. Penso que seria melhor do que ele. Penso que fiquei melhor sem ele, mas vazia sem as palavras que podia fazer de minhas, que eu emprestava quando as minhas não eram o suficiente. Ouço-me murmurar suas palavras como se fossem minhas próprias invenções e vejo o vazio da minha alma povoar-se novamente de cores absurdas e enlouquecidas.

Das fotos que não existiram, dos gostos que se apagaram, das ruas que não guardaram nossas sombras e nossos passos ficou fixa em minha memória a certeza de que, de tudo o que fiz, ele certamente foi minha invenção mais ousada.
Se você estivesse aqui poderia te dizer que não está chovendo mas tampouco faz sol. Você não ficaria impressionado e puxaria uma cadeira. Sua cadeira. O canto onde você sempre senta pra me olhar enquanto falo bobagens e ouço músicas que não compreendo. É polonês?, te perguntaria. É polonês, saberia de pronto, antes da sua resposta chegar aqui onde estou: sempre tão perto, igualmente tão longe.

Cigarros sobre a mesa. Pegaria um dos seus, tomaria o seu isqueiro. Eu sou folgada, preciso de espaço, preciso ter o que não me pertence. Te faria uma piada, você sorriria pois estou sempre a te poupar da verdade e a verdade é que nada disso tem sentido algum, nada tem realmente importância. Ou quem me poupa é você pois a verdade não te afeta, não te atinge pelas costas como um tiro à queima roupa como me atinge. Estamos leves e soltos a mover-nos, a falar-nos e você está tranquilo, sempre calmo a perder de vista. Que você me fale, que eu te fale, que as notícias corram lá fora soltas e que as novas não sejam as esperadas: sigo roubando seus cigarros e o precioso tempo que é só seu. Eu o roubo e trago cada um dos seus minutos e não sinto culpa. Às vezes eu não sinto nada. Às vezes ter sobrevivido à adolescência é uma tremenda falta de sorte. Todas as vezes que penso em quando te conheci penso que é falta de sorte não ter te visto antes, por acaso. Estou segura de que eu saberia que você é você e te falaria assim como agora te falo e você saberia que eu sou eu e daríamos passos gigantes rumo à felicidade que nos aguardaria na próxima curva. Agora na próxima curva só encontro a morte e um pouco mais perto de mim estão as horas vazias que passarei a contemplar a cadeira onde você não está, e pensarei (com um sorriso irônico, confesso) na diferença de significado das palavras que pronunciamos sem que o outro possa abarcar seu sentido por completo, pois não crescemos juntos. Você já veio pronto, tem o que é necessário para suportar o que não suporto. E o que eu não suporto é a pequenez da vida diante da imensidão da morte.

(Enquanto escrevo, faço uma prece desordenada que exige que alguém bata à porta, que atrás dela estejam seus olhos e que neles eu encontre a calma que não tenho, a esperança que perdi, o amor que noutro lugar jamais encontro)

terça-feira, 13 de novembro de 2012

Via-se logo a doçura própria dos monstros na precisão de cada um dos seus gestos. Dez anos depois e ainda me recordo como abriu o casaco e retirou um pequeno livro de dentro, como quem empunha uma arma diante de si e de mim e preenche o espaço entre nós, a distância imprecisa entre as duas poltronas do trem, frente a frente, entre seu rosto e o meu.

A distância alcançava e atingia também o mundo lá fora, por onde corriam meus olhos antes da sua chegada. O mundo era imenso e ainda assim, cabia confortavelmente naquela janela que parecia emoldurar o que havia de melhor a ser visto ou assim eu o imaginava por não ser capaz de pensar no que haveria além daquela paisagem, dos pinheiros, das casas repousando tranquilas sobre a neve, sob a neve que amacia o mais rude dos passos, silencia o mais estridente dos ruídos. Um tiro. As asas de um pássaro negro.

A neve que caía era pouca e desmanchava sobre o trem, escorria gota à gota pelo vidro, uma a uma a fundir-se, perdendo-se, refazendo o caminho até o solo no ciclo perfeito e natural da água sempre previsível e sempre a surpreender-me. 

Apenas uma hora nos separava do destino final quando ele chegou com seu livro, o casaco pesado, o gesto preciso e leve a revelar-se exageradamente harmônico por conta daquele rosto simétrico e bondoso. Havia bondade também quando ele sorriu e pareceu dizer-me que, devido às atuais circunstâncias, teria de me matar imediatamente. Devolvi-lhe o sorriso e tirei do bolso do casaco um maço de cigarros. Acendi um. Ofereci-lhe outro. Agradeceu-me. Passei-lhe o isqueiro.

Eu não fumo. Nem ele.

Dizem - e já não sei quem diz  - que em face da própria morte vê-se a vida passar inteira num segundo diante dos olhos. Minha vida não passou apressada naquele momento; escoava lenta, vagarosa e desapressada como as gotas que rolavam pelo vidro, em perfeito contraponto à paisagem que contemplávamos agora mudos e que se estendia pela planície que emoldurava cada margem do rio sob a ponte. Não sei se por conta do rio, da lentidão dos minutos, do cigarro ou da maneira como ele disse "circunstâncias" ou se porque falava da morte, mas pensei nela, em como poderia dizer sem a menor ou mais vaga esperança que a vida não passaria por nós - ou que nós não passaríamos pela vida? - em vão. Viver é uma coisa muito perigosa, ela disse tranquila e sem emoção pois talvez não compreendesse o que significava "perigo", e eu a repetia agora, também tranquilo e pouco convicto, também sabendo que naqueles momentos reluzentes em que se sabe com toda certeza que se está vivo aproxima-se perigosamente da morte, sem medo da morte, sem medo da vida. Sem medo. Tudo é aqui. E é agora. Agora basta. Bastava. Ela disse.

E por pensar nela diante da minha morte anunciada, pareceu-me ainda mais bela e mais absurda ela, e não a morte. Senti que finalmente a compreendia, que a conhecia, que a veria surgir a qualquer momento com seus passos dançantes, com a voz que nunca mais ouvi mas que reconheceria logo, que me cativaria e me teria cativo, preso e prisioneiro voluntário do absurdo das suas palavras, palavras grandes, palavras duras, palavras que se desmanchavam e caíam dentro de mim e a minha volta, frias feito neve, rodopiantes como seus passos, como a colher entre seus dedos a revolver o café, o açucareiro, meus pensamentos.

Estive tão imerso em meus devaneios que esqueci-me completamente do meu interlocutor, que parecia igualmente esquecido de mim. O cigarro que lhe ofereci queimava sem ser tragado entre seu polegar e o indicador. Lembrava-se. Sonhava. Esquecia-se. Não fumava. Café?, quis saber ela. Me ama?, quis saber eu. Sorri porque ela sorriu e lembrá-la me fez sorrir novamente. Dessa vez um sorriso feio e fora de contexto. Ele me olhava com a sobrancelha esquerda erguida, um pouco de lado e como quem pergunta "o que há?". Não havia nada, eu disse a ela e já fazia tempo, não havia nada com que se preocupar. Era muito cedo para isso. Ou muito tarde. E porque nunca era a hora certa, e porque estávamos sempre atrasados ou a vida se precipitava a nossa frente rápido demais, ficávamos os dois a contemplar a vida como se estivéssemos sempre à janela de um trem.

O trem. Talvez por isso pensasse nela.

- Lembra-se da viagem que não fizemos?
- Como poderia me esquecer?

Deitados no gramado úmido numa tarde de inverno contemplávamos o céu sem nuvens e lembrávamos do que jamais poderíamos ter esquecido. Falava-me da roupa que teria usado em Paris e de como eu estaria igualmente elegante em Londres, onde teríamos assistido ao concerto e bebido vinho, onde tomaríamos o trem de volta para Paris e jantaríamos num pequeno bistrô que serviria sopa e a omelette du fromage  que estaria divina. Lembrávamos dos amigos pintores, dos poetas, dos alcoólatras e das danças que não dançamos porque nunca aprendemos a dançar. Eu lhe diria então que era tarde e voltaríamos ao nosso appartement, e pronunciávamos essa palavra com um orgulho pretencioso que não era arrogante, non!, era élégant. E élégant seria o tal appartement no arrondissement de Paris e daquele número ordinal em diante falávamos somente em francês. Ou era assim que agora eu me lembrava? Por ela eu teria inventado um outro idioma qualquer que só eu soubesse e que só ela entendesse. Criaria novos verbos para as emoções que não podíamos nomear antes, haveriam substantivos e sujeitos mais substanciais e vivos que a própria Vida, e tudo o que eu dissesse seria como uma pintura hiper-realista, uma experiência de quase morte. Como num encantamento meus novos adjetivos fariam a hora passar devagar, em slow motion, tingiriam de preto e branco a paisagem, num film noir, o café, o trem, o céu, a neve, a fumaça do cigarro, meus dedos frios, os olhos dela, meu ciúme.

Se me pedisse, se tivesse pedido eu teria inventado tudo, teria escrito livros e pintado quadros com esse idioma oculto e, ocultista, teria ficado, teria partido, teria mudado e permanecido o mesmo. Mas ela não disse nada, e por conhecê-la tão bem me transformava nela e enxergava além do seu silêncio. Eu sabia.  Eu adivinharia tudo. Lembrava-se? Sonhava?

Não.

Calava-se. E esquecia-me.

Esquecia-me assim como eu a esquecia nas páginas dos livros que folheávamos - e penso nisso pouco antes do homem à minha frente abrir um deles. Folheava, distraído e displicente, a provocar-me. Como o Estudante de Wilde clamávamos, eu e ela, a estupidez do amor e metíamos nossas cabeças ainda mais fundo nos livros sem nos dar conta de que, bem debaixo dos nossos narizes, o amor irrompia decidido e, terrivelmente obstinado avassalou nossos frios corações. Amar era estúpido e não amar, mais estúpido ainda. Vale mencionar que nossa estupidez era imensurável naqueles tempos e maior ainda naquele dia em que nos despedimos sabendo sem saber que jamais nos veríamos novamente. Virei-me rapidamente depois daquele longo abraço e tomei o trem.  Procurei por seu olhar uma última vez e repousei os olhos uma última vez sobre seus cabelos. Caminhava firme. Partia. Não se voltou e eis tudo. A porta do trem se fechou com a determinação violenta do que assola corações.

O homem a minha frente parecia velho, parecia cansado, parecia-se comigo e era eu. Como eu. Procurava por ela como quem procura no escuro a maçaneta de um porta quando já não há mais porta nem maçaneta, somente a recordação vaga de onde cada coisa se encontrava: entre as mãos que tateiam e a noite, o espaço denso e descolorido que tudo abarcava.

segunda-feira, 6 de agosto de 2012

Procurava por ela como quem procura no escuro a maçaneta de um porta quando já não há mais porta nem maçaneta, somente a recordação vaga de onde cada coisa se encontrava: entre as mãos que tateiam e a noite, o espaço denso e descolorido que tudo abarcava.